– Morricone não gostava da pergunta de quantos filmes ele fez. Achava que o foco deveria ser a qualidade do trabalho dele e não a quantidade.
– Fez cerca de 500 filmes e trabalhou até a morte. às vezes, por qualquer motivo que seja, não assinava com o próprio nome, mas com os nomes Dan Savio ou Leo Nichols.
– Num período de 5 anos, de 1968 a 1973, ele compôs cerca de 120 trilhas musicais. 30 apenas no ano de 1972. Pensa bem, ele compôs basicamente 5 trilhas a cada 2 meses naquele ano.
– Acreditava fortemente que o compositor também deveria orquestrar e e entendia que o compositor que dava a obra para outro orquestrar era uma pessoa que não passava de um aficionado por música, sem no entanto ser um autor.
– A primeira parceria dele com um diretor foi com o Luciano Salce, que inclusive foi um diretor que atuou pela Vera Cruz no tempo que ficou aqui pelo Brasil.
– Uma outra parceria muito importante foi com o Pasolini. Recomendo a escuta da trilha sombria de Teorema (1968).
– Ele também fez uma parceria com o diretor Mauro Bolognini. Nesse caso, temos o exemplo da música de O segredo das velhas escadas, de 1975. A música mostra a simplicidade das melhores trilhas de Morricone. Um solo de flauta sobre os acordes de piano vão te quebrando e te conquistando e daí ele entra com as cordas, que provoca um arrepio em qualquer um.
– Da parceria com o Giuliano Montaldo, o filme que enfatizo é o A Qualquer Preço, de 1967. Esse filme é um dos primeiros que dão um passo bem forte na direção da popularidade Mainstream que o Morricone pegou, não necessariamente pelo sucesso do filme em si, mas pelo fato de Morricone começar a sua aproximação com os EUA, mas sem perder a raiz italiana. Uma coisa muito interessante sobre o Morricone é que me parece que ele não via o caminho de ir para os EUA como uma forma de sair da Itália e se firmar por lá, mas como uma expansão da sua atuação. Além disso, parte do filme se passa no Brasil, o que em parte mostra uma situação meio esquisita para nós brasileiros (uma representação muitas vezes caricata e incorreta) mas também realça ainda mais essa questão de alcance internacional do trabalho do maestro.
– Entrando nas parcerias mais notáveis (seria impossível listar todas nesse vídeo) temos parceria com Giuseppe Tornatore, destacada especialmente no filme “Cinema Paradiso”, de 1988. Nesse filme, dentre tantos detalhes da música, gostaria de destacar a participação do filho de Enio, o Andrea Morricone, que a essa altura estava trabalhando junto ao pai e o ajudou a compor para “Cinema Paradiso”. Tenho para mim que essa cumplicidade entre os dois de amor pela arte musical se alinha perfeitamente à narrativa do filme, talvez por isso ela seja tão notável.
– Ainda na parceria com Tornatore, Morricone fez um outro filme que gostaria de destacar: A Lenda do pianista do Mar, de 1998. Nesse filme há uma música que Morricone fez em parceria com Roger Waters, do Pink Floyd. Essa música nos créditos finais já é tocante por si só, mas o filme todo é cheio da trilha de Morricone que gera uma mistura de emoções nostálgicas e estranhamentos que ajudam a criar a empatia na busca de pertencer a algum lugar, algo que tenho como o tema principal do filme.
– A internacionalidade de Morricone não se resumiu ao trabalho dele para o mercado dos EUA. Exemplos são o Henri Verneuil na França, Mikhail Kalotozov na Rússia, Espanha com o Almodóvar e outras produções com diretores da alemanha, méxico, Iuguslávia e outros países, incluindo uma colaboração com o Fassbinder no documentário Alemanha no Outono (1978).
– Uma questão do Morricone que pode se considerar um problema é que ele aceitou todo tipo de trabalho que ele tinha à sua disposição, mesmo aqueles que não faziam muito parte do seu estilo e que, em sua grande maioria, resultaram em trilhas musicais não tão boas ou até mesmo ruins. O que isso me mostra é que, acima de tudo, Morricone gostava de fazer música. Era a grande questão dele. E, por vezes, essa música não saia bem. Mas ele seguia e logo depois aparecia com uma obra prima. Além disso, há o aspecto de querer fazer diferentes tipos de música para explorá-las, mesmo que não seja a sua especialidade. Essa é uma das características de pessoas que estão sempre num constante estado de aprendizado, de exploração, buscando novas fontes para beber e novas barreiras para superar. Mesmo as obras de baixa qualidade de Morricone me mostram o quanto ele era um grande músico.
– Também trabalhou com o diretor Bernardo Bertolucci e dessa parceria destaca-se o filme Novecento (1977), que demostra um desenvolvimento do seu estilo que seria bem lembrado na parceria com Sergio Leone, que a essa altura já tinha se estabelecido muito bem. Um estilo simples, com alguns momentos mais complexos, presença marcante da voz criando uma moldura para os outros instrumentos e trazendo uma maior identificação nossa com a música.
– E aí, a partir do começo da década de 1970, Morricone começou parcerias com diretores dos EUA, a maioria delas que não passariam de um filme. Nesse período, Morricone passou a ser considerado um estilo encarnado. Diretores passavam a chama-lo não para uma colaboração perene de vários filmes, mas porque queriam um tipo de música específica que ele se tornou reconhecido por fazer. Em parte, isso é uma bosta porque Morricone possuia um potencial criativo que não se limitava a um ou dois filmes que ele havia feito, mas também podemos dizer que isso é impressionante porque são poucos compositores de cinema que podem se tornar a referência absoluta de um estilo musical.
– Dentre os filmes que ele fez nos EUA, se destacam: Exorcista II – O Herege (1974), Orca, a baleia assassina (1977), O enigma de outro mundo (1982), Guerreiros do fogo (1985), O início do fim (1989), Cinzas no Paraíso (1978), Os intocáveis (1987), Na Linha de fogo (1983) – nesse ele foi convidado diretamente pelo Clint Eastwood que era o protagonista do filme -, Bugsy (1991) e A missão (1986).
– Em A Missão, Morricone recusou diversas vezes o convite do diretor Roland Joffe. Ele literalmente falou que o filme estava absurdamente lindo e que a música poderia estraga-lo. O diretor seguiu insistindo e ele fez uma das trilhas mais marcantes da sua carreira. Junto ao filme e à temática da narrativa, Morricone adicionou em uma entrevista: “a música é uma forma de salvação”.
– Mas o que mais marcou a carreira de Morricone foi o seu trabalho com o seu amigo Sergio Leone. Ambos se conheceram ainda jovens, antes de começarem a trabalhar com o cinema e eventualmente acabaram trabalhando juntos quando Leone teve a oportunidade de fazer um filme de faroeste num estilo bem diferente do que vinha sendo feito. A essa altura, Morricone já havia feito um faroeste chamado Duelo no Texas (1963), mas foi na parceria com Leone que ele pode de fato ter liberdade para fugir dos clichês musicais dos filmes de faroeste dos Estados Unidos.
– E ele fugiu com tudo que tinha: Misturou guitarra com assobios, com sinos, com chicotes, com ranger de rodas, com bater de martelos, sons de pássaros… Criando assim uma forte distinção com a orquestra utilizada anteriormente. Isso estava plenamente alinhado com o que Leone estava pensando para o filme, que tinha um herói meio malamanhado, com a barba mal feita e sem uma moral inabalável. Além disso, o cenário era muito mais desolador e violento do que os faroestes de Hollywood. E Morricone soube explorar isso no campo da música, diminuindo a diferenciação entre música e efeitos sonoros, criando uma bagunça no que seria a divisão de departamentos da produção cinematográfica clássica. Claro que nem de longe ele foi o primeiro a fazer isso, mas foi o que teve o maior alcance até ali, especialmente em um gênero tão consolidado como o Faroeste. Tudo isso já ficou estabelecido no primeiro filme: “Por um punhado de dólares” (1964) e foi desenvolvido para “Por uns dólares a mais” (1965) e “Três homens em conflito” (1966). Esse último é um filme excepcional que tem uma sequência final extremamente estudada por conta da montagem, mas que só consegue manter o seu ritmo e duração se baseando na música de Morricone.
– Depois da primeira trilogia, Morricone teve uma segunda trilogia com Leone, onde a maturidade alcançada pelos dois fica mais evidente. Em “Era uma vez no oeste” (1968), a música se torna um elemento diegético central através da gaita de um dos personagens e vemos uma evolução no desenho sonoro através de utilização de sons de gotejar, de um catavento, rodas de carroça, vento e locomotivas. Tudo isso se comunica perfeitamente na linguagem musical que Morricone constrói pro filme, sendo esse o ápice da criação colaborativa do diretor com o maestro. Os outros dois filmes “Quando explode a vingança” (1971) e “Era uma vez na América” (1984) mostram a parceria consolidada e também possuem características bem interessantes, mas vou apenas citá-los uma vez que essa publicação já está ficando longa demais.
– Nos últimos anos, o trabalho de maior destaque do Maestro foi “Os Oito Odiados” (2015) dirigido por Quentin Tarantino, que rendeu o Oscar de música original a Enio Morricone. Mas nem de longe esse era o melhor trabalho dele. Esse Oscar já estava atrasado uns 30 anos quando Morricone o ganhou. Entretanto, fico feliz que ele tenha tido esse reconhecimento importante no fim da carreira. Morricone é muito, mas muito mesmo, maior que o Oscar.
Morricone viveu uma vida incrível. Ele era a sua música e todo o seu coração estava na sua criação. Em seu obituário, ele não cita nada sobre as suas obras. Em vez disso, agradece a sua família, em especial à sua esposa, com quem estava casado desde 1956. Ele não precisava ter citado a sua música: Tudo que vi no obituário dele foi uma pessoa de fortes sentimentos e claramente todos esses sentimentos estavam na sua música. Por fim, creio que o exemplo dele, como criador, nos mostra a seguinte lição: nossas obras devem ser a expressão do que sentimos e a música é a vida. E é isso.